setembro 19, 2023

Se É Democrático, É Para Todos?


 


Lendo este artigo no jornal Estadão:

Pedidos de admissão gerados por IA viram dor de cabeça para faculdades nos EUA

o texto faz a seguinte asserção:

"A fácil disponibilidade de chatbots de IA, como o ChatGPT, que pode produzir textos semelhantes aos humanos em resposta a solicitações curtas, está pronta para mudar o processo tradicional de inscrição em faculdades seletivas - dando início a uma era de plágio automatizado ou de acesso democratizado dos alunos à ajuda para escrever redações. Ou, talvez, ambos."

A autora, Natasha Singer, empregou o termo "democratizado" como um "eufemismo" popular, compreensível, mas totalmente inadequado.

É comum autores abusarem de eufemismos para se tornarem compreendidos, simpáticos ou socialmente aceitos.

O texto conduz ao reforço de uma compreensão distorcida sobre o que é democracia e à adoção de uma forma de pensar equivocada.


Se não fosse um conceito tão importante, certamente nem teria ânimo para escrever sobre o tema.

Frases assim, reforçando conceitos desfigurados, inadequados e impróprios vão contribuindo para uma confusão geral nada saudável, nada produtiva, confundindo democracia como um direito a todos, um acesso geral, como um estádio de futebol com bilheteria liberada.

Oferecer a possibilidade para que qualquer pessoa possa ter acesso à educação não significa democratizar o ensino, mas reconhecer o direito à igualdade de possibilidades. É um efeito direto do conceito de meritocracia. Algo como, se você é um ser humano (o mérito é ser um humano), então você pode frequentar um curso para humanos.

Acontece que a meritocracia é por natureza nivelada por conquistas, daí o termo "meritocracia" pois a cada conquista em que você adquire o mérito respectivo lhe proporciona direitos adicionais.

Democracia é um tipo de meritocracia, onde um cidadão, por ser cidadão, pode expressar sua opinião em eleições e pleitos. Não é efetivamente para todos.

Observe que o direito ao voto não vem de graça!
Ele embuti o conceito seletivo da meritocracia pois não é qualquer um que pode sair votando pois existem regras para que o indivíduo tenha este direito.

Infelizmente, com o passar do tempo, as coisas foram ficando confusas e misturadas pelos discursos demagógicos fazendo confundir "democracia" com vale tudo, bilheteria aberta, boca livre, o famoso "é pra todos, para quem quiser", de graça, free, etc.

Se você ainda tem dúvidas, eu lhe pergunto:
Cobrar ingresso restringe o acesso, logo a "cobrança de ingresso" seria democrática?


Na frase acima, temos uma prova pelo "absurdo", ou seja, é um método onde você parte de uma premissa que por fim lhe conduz ao absurdo, provando por lógica que a premissa é falsa.

A prova que a nossa sociedade é totalmente baseada em meritocracia vem do fato dela ser monetizada.
Receber e pagar é uma forma de avaliar e portanto é um efeito inegável de meritocracia.

Democracia é o direito de votar, mas em si mesma não é democrática no sentido usual que as pessoas costumam empregar porque não é para todos, pois exige um título eleitoral.
Percebe? É meritocracia!!
Existem exigências para se obter um título eleitoral.

A meritocracia é a base do julgamento humano em todas as nossas ações ao longo de todo o tempo de existência da humanidade.

Se você é mãe ou pai, então provavelmente já condicionou atender o pedido de seu filho a alguma coisa que ele deva antes cumprir.  Se você fizer isto, então pode aquilo.

Confundir que democracia significa liberação geral é o mesmo que tornar a mãe daquele garoto uma despótica autocrática ou o chefe que recompensa o melhor funcionário, um ditador!
Seria algo como pensar que o campeão que chegou ao primeiro lugar é fruto de um regime aristocrático.

Todos esses pensamentos são insanos, mas a mente humana funciona como o Titanic.

O Titanic era dividido por muitos compartimentos, e por isso era considerado um navio à prova de naufrágio, ou seja, mesmo havendo vazamento em dois ou três compartimentos ainda assim o navio continuaria flutuando.
Por pressão do dono do navio, John Pierpont (J.P.) Morgan, o Titanic navegava muito embalado em uma zona com muitos icebergs e névoa, bruma, onde a visibilidade é instável. O dono visava provar que o navio era rápido. Quando avistaram o iceberg, o Titanic não teve tempo de realizar uma manobra para desviar, principalmente considerando que ele tinha leme pequeno para o seu tamanho, mas suficiente para cumprir trajetórias oceânicas porém insuficiente para manobras radicais. Por um conjunto de fatores, conseguiram a proeza de rasgar o Titanic com um rasgo tão grande que a divisão em compartimentos se tornou inefetiva.

O que tem o Titanic em comum com o pensamento humano?
O pensamento humano funciona com compartimentos estanques, selados como o do Titanic.
Temos o hábito de pensar de forma isolada, restrita, ou seja, dentro de um compartimento que forma o contexto.
Então o nosso raciocínio parece valer dentro daquele restrito compartimento.
Quanto aplicamos o mesmo raciocínio a outro compartimento, muitas vezes alegamos que os resultados são diferentes porque são coisas diferentes.
A crise acontece, e precedendo a ela vem a confusão, quando nós somos obrigados a trabalhar um pensamento que se torne comum a todos os compartimentos, como se rasgássemos o corpo de nosso raciocínio de ponta a ponta. É justamente quando o indivíduo afunda na confusão.

Isolar raciocínio pode ser útil, mas é necessário que todos os compartimentos estejam trabalhando harmonicamente, ou seja, com coerência.

Analisar a democracia por esse método ajuda a entender que não existe igualdade para todos, mas tudo advém de algum mérito anterior, por menor ou mais óbvio que seja, até mesmo o direito à vida, cujo mérito é termos tido pais cuja gravidez teve sucesso.

Portando, democracia não significa igualdade para todos, mas possibilidades mais amplas e condescendentes com a representatividade do desejo da maioria.


E o que acontece quando a maioria excede a minoria pelo mínimo?

Por exemplo, imagine que a diferença entre os votos de dois candidatos a presidente seja algo em torno de 1%?

Então, os atos do presidente eleito serão de fato representativos da vontade daquela nação?
Ou apenas da metade dela?

O que acontece com uma nação representada apenas pela metade dela diante de posicionamentos políticos críticos?
A parte excluída estará disposta a pagar pelas consequências das decisões da metade ganhadora?
E por quanto tempo e intensidade de sofrimento?

Teria o presidente eleito o direito de se posicionar livremente de acordo com a ideologia do seu partido vencedor?

Se estendermos o raciocínio a uma relação conjugal, quanto tempo o casal poderá suportar a união diante de decisões unilaterais delicadas que levam a consequências muito indesejáveis?

Lembrando que o divórcio de um casal já é muito dolorido, o divórcio de um povo é ainda muito maior, insuportavelmente mais dolorido.


Resta ainda um longo caminho de aperfeiçoamento do processo democrático, que parece quase estagnado pelas bases alimentadas pela demagogia que trabalha conceitos falsos mantendo o status quo que fomenta o extremismo, tal como células do corpo que adoeceram, tornando-as o câncer que corrói a existência do todo.

A democracia precisa evoluir para reduzir a oscilação dessa gangorra ideológica, em que, quando um lado está em alta, conduz à sua própria queda para elevar o lado oposto.

E não sai disso!

Democracia conduzindo a regimes autoritários, sejam eles de esquerda ou de direita, e consequentemente os mesmos regimes outrora eleitos tornando-se desgastados por suas deficiências que conduzem às lutas internas para o retorno à democracia.

A dissolução da União Soviética resultando no conflito entre Rússia e Ucrânia, são exemplos vivos do nosso momento atual.

Se duas pessoas sentadas na ponta da gangorra caminharem em direção ao centro, a oscilação é reduzida.

Se aperfeiçoarmos o processo democrático tornando-o de fato mais representativo apesar de resultados desfavoráveis a este equilíbrio, então também reduziremos a oscilação dessa gangorra do sofrimento humano em busca da paz e da justiça que sustente uma distribuição mais equitativa das riquezas, já que esta última depende da primeira.

 


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