novembro 29, 2022

Hot Crowns - Capítulo IV - Rufinus e a Revogação

 



PREÂMBULO

 “Hot Crowns” é uma distopia política contando a história de uma nação imaginária na luta para encontrar seu melhor caminho nos descaminhos da paixão.
Qualquer semelhança com a história de qualquer nação é mera coincidência.

O imaginário é uma colcha de retalhos onde costuramos nossas percepções e sob ela nos abrigamos.

Este post faz parte de uma série: Capítulo anterior


Hot Crowns - Capítulo IV - Rufinus e a Revogação


Rufinus era um plebeu com pregresso militar, dono de um temperamento rebelde e provido da inconsciência que se confunde com a coragem daqueles que se acreditam predestinados divinos.

A pressão de sua veia autoritária logo causou forte hemorragia de talentos que compunham a sua realeza. Opiniões contrárias levavam ao afastamento de seus defensores. 

Rufinus ao longo de seu governo foi colecionando atos despóticos tornando claro que sob a capa da fidelidade à pátria de um bom soldado havia também escondido um ditador ainda mais fiel a si mesmo.

As ações de Rufinus refletiam a sua rebeldia dos tempos militares.
Foi se indispondo com altos representantes e reis de outros reinos, ora por um comentário desnecessário, ora pregando a disponibilização de armas à população como faria qualquer militar em momentos críticos em tempos de invasão e guerra, quando então até um cidadão sem preparo torna-se apto pelas circunstâncias. O reino, porém, não estava em guerra, mas parecia querer caminhar para uma.

Seu descompromisso com as políticas de preservação de recursos naturais de seu reino, desfez medidas e implementou outras que causaram grande retrocesso, mal-estar e angariou a antipatia de muitos reinos que se afastaram de seu reinado retirando os seus apoios políticos e econômicos. 


Rufinus também causava constrangimentos buscando alianças com outros líderes e reinados de natureza déspota ou avessos às tradições de seu reino, em desprestígio das alianças tradicionais que sempre garantiram o status quo de liberdade e paz que seu povo auferia.

Rufinus através de seu estilo sem a amenidade do dom político, agradava grande parte dos súditos que sintonizavam com esse discurso contundente, apoiados por aqueles que odiavam a dinastia Opus.

Muitos tomados pela cegueira do fanatismo, outros que, mesmo não havendo a paixão fanática, não conseguiam perceber as sinalizações que os atos de Rufinus iam gerando, levando-os a manter seu apoio.

Havia ainda uma categoria de súditos que reunia um misto de esperança, rejeição a Opus e interesse proveniente das atenções especiais de seu lider que a utilizava como massa de manobra e que detinha grande influência nos setores de geração de bens como também no seu fluxo.

Rufinus a despeito de tudo dividia com Opus I o prestígio do reino, tornando uma guerra de Titãs onde só haveria um grande perdedor, o próprio povo — correndo o risco da perda de seu estilo de vida tradicional por qualquer um que alcançasse a vitória plena na execução de seus objetivos mais recônditos, cujo espólio de guerra resultaria em graves prejuízos para o reino, onde o próprio povo certamente pagaria a conta por seu mau investimento. 

O reino corria risco diante da escalada de rivalidades de acabar seguindo a história de um outro reino, que há muito tempo atrás por causa de uma divergência interna sobre o tratamento político dado à escravidão terminou levando o seu povo a uma guerra civil entre o norte e o sul. Para a sorte do mundo, o norte venceu e a escravidão inicia seu longo caminho da transformação do preconceito racial em convivência pacífica e equitativa dos direitos independentes da origem racial.

O povo do reino de Opus I e Rufinus parecia não ser mais aquele mesmo povo que formava o reino de outrora cuja natureza era mais conhecida como sendo a de um povo que parecia pacato, anestesiado talvez pela ignorância que o véu do tempo foi levantando com a ajuda paulatina de uma sucessão de erros de todos os segmentos sociais pela disputa da vida através da justa distribuição das riquezas, aliás, uma causa comum dos conflitos.

Rufinus tinha a seu favor, no entanto, o mérito de ter servido à causa anterior, quando foi necessário  comutar a natureza do governo que ele substituiu, já que ele fomentava a esperança de renovação de poder.
Grande parte dos apoiadores, aferrados a este sonho, não tinha olhos de ver ou não cedia à frustração de seus sonhos, seja por falta de opção ou humildade em refazer caminhos quando o destino final deixa de atender o propósito inicial.

Havia no reino uma classe especial de súditos que desejava transformar o reinado a qualquer custo.
Acreditavam eles que era preciso garantir fosse o que fosse ("whatever it costs") e por isso buscavam o caminho da luta através do autoritarismo, empunhando armas se necessário. Entendiam como a única forma de devolver a ordem que o deslumbramento de poder de que se apossou a dinastia Opus havia comprometido diante da sucessão de escândalos que foram insuflando seus corações. Um fenômeno muito semelhante àquele que ocorria em outro reino de grande prestígio e poder, que parecia uma tendência geral àquela época entre a liberdade e o despotismo.


O poder prolongado é como o ópio que consumido ao longo dos anos vai transformando a personalidade que mergulha o ser nas penumbras da ilusão autodestrutiva e da presunção egocêntrica.


Seria Rufinus um mal necessário?

Teria o remédio efeito colateral ainda pior que a doença?

Algo como a morfina, que na dose certa tira a dor e promove conforto ao paciente, porém em dosagem excessiva mata?

Enfim, o conjunto de ações de Rufinus levou o conselho ao desespero, pressionado por suas imposições e inferências que são características das personalidades despóticas ou daqueles que buscam o autoritarismo.


Rufinus sabia comandar no estilo que os militares são treinados para fazê-lo.
Era apenas um soldado que havia alcançado alguma colocação na hierarquia militar, porém não tão alta que o distinguisse, e como tal tinha algum prestígio com as forças militares do reino, mais pela afinada da sua origem militar comum que por seu passado militar.
Também os militares dividiam-se pela dúvida geral em que se perguntavam até onde o remédio que sara não condena o paciente à morte?

Os militares haviam aprendido sua lição através do pesado caminho que líderes anteriores trilharam, e mantendo-se fiéis aos resultados do passado, mantinham-se cuidadosos na participação desse jogo de poder sem deixar de preservar seu papel fundamental na defesa do status quo do reino.

O futuro de Rufinus estava sendo selado por ele próprio...
Abrira muitas frentes de batalha sem poder ampliar seu exército na mesma proporção a exemplos de muitos outros reinos no passado que caíram pela mesma inabilidade.

Não há rei que prossiga seu reinado cavando o próprio isolamento e fomentando o desprestígio de poderes em favor de si próprio. Tudo caminhou para que muitas forças por ele hostilizadas se unissem, internas e externas ao reino, oferecendo suporte às mais ousadas das estratégias.

O apoio popular de Rufinus contudo subsistia, mesmo diante de atos de descaso com a saude da própria população que lhe dava apoio. Talvez esse fenômeno se sustentasse mais pela força do desespero e do ódio que tornam cego o bom senso da crítica mais equilibrada capaz de entender que todo ser humano tem dois lados, e de perceber qual o lado que está prevalecendo no final das contas.

Um fator curioso que contribuía para agravar a tensão era a tendência que ressurgia em vários reinos àquela ocasião, onde grupos de radicais levantando antigas doutrinas do ódio e fazendo uso da força pelo fanatismo intransigente estavam derrubando reinados e assumindo o poder de outros reinos apoiados em grande parte por seus próprios súditos mediante movimentos armados e muito bem organizados em exércitos que disputavam à força de batalhas o domínio político e econômico.

Talvez o panorama geral do mundo àquela época servisse de inspiração a Rufinus e explicasse seu interesse pela popularização das armas e seu despotismo como meio de alcançar seus objetivos.
Talvez não, porque muitos entendiam que o direito à própria defesa lhes havia sido roubado deixando-os à mercê da sorte sem direito a autodefesa sendo necessário uma mão forte que conduzisse os destinos do reino.



A polêmica sempre foi o combustível dos ânimos que conduz os destinos dos reinos.

Divida para conquistar.
Crie a dúvida para dividir.
Insufle os ânimos pela polêmica.
Angarie ação pelos ânimos insuflados.

A velha receita, tão velha como a humanidade, não falha!!!


Súditos são formados pela vida, em sua maioria sob o chicote da necessidade diária onde sobra pouca ou nenhuma oportunidade para ver mais longe quando os olhos se preocupam em divisar por perto uma forma de suprir a necessidade mais urgente do hoje, do amanhã, da semana, mas jamais com a segurança do longo prazo daqueles que não dependem de prover o seu sustento na troca diária de labor.

A miopia do pensamento é um efeito colateral crônico da população em face do desmazelo do Homem pelo Homem.


Talvez o leitor fique confuso e entediado diante da diversidade de panoramas que compõem este palco de acontecimentos, mas a reação de um povo é produzida pelo amálgama de razões diversas fundidas no cadinho da emoção coletiva. 


É justamente por esses motivos diversos, que somados, levam as coisas acontecerem como acontecem e cuja complexidade afasta o povo do entendimento que lhes beneficiaria com uma boa parte da solução de seus problemas.


O conselho contestado em sua autoridade percebeu que havia retornado ao ponto de partida quando Opus I fora destituído, anulando os progressos dos esforços anteriores quando lutara ao lado do condado e de seu intrépido juiz para evitar o destroçamento da liberdade de poderes, desprovido dos caprichos exclusivos de uma majestade déspota que concentra todo o poder em si mesma.

A luta dos reinos para escapar da saga das ditaduras reais parecia querer devorar vários reinos, e este reino não era exceção.


À medida que o tempo passa sob a ação do desespero, igualmente busca-se soluções ousadamente desesperadas, mesmo que sem coerência com as ações passadas, rasgando tudo o que fora escrito antes e refazendo o que havia sido decidido.


Onde deveria haver a verdade que sustenta o sentido de justiça e segurança, havia agora duas verdades flamantes na gangorra dos interesses do reino, dividindo drasticamente sua sociedade em dois grandes blocos, fomentando o pior.


Uma medida extrema exige um álibi que a sustente, algum artifício que servisse para justificar a anulação do que se havia consumado através de uma somatória de decisões não apenas sacramentadas, mas também em execução, revogando tudo o que houvera sido decidido e feito, respectivamente.

Desta vez a solução não veio de longe mas da criatividade do próprio conselho que, em sua maioria, se converteu em um dos mais ferrenhos opositores de Rufinus, e que na sequência alucinada de eventos decidiu aceitar como bom o aparecimento inusitado e muito surpreendente de documentos particulares extraídos de origem irregular por meio de ação criminosa às escondidas que foram subtraídos das instalações pessoais dos principais envolvidos, aquele juiz e seu grupo, à revelia de todo o processo, ignorando a impropriedade dos meios, contrariando os princípios cabais do direito em voga naquele reino, mas que ainda assim mesmo justificariam a anulação de todas as ações subsequentes condenatórias de Opus I, tudo justificado a título da perda de idoneidade da imparcialidade de julgamento de todas as ações em todas as cortes, inclusive aquelas que foram julgadas na própria corte do conselho, a máxima corte do reino, sem que se apresentasse à população maiores detalhes, promovendo o cancelamento da condenação de Opus I e tornando-o apto a competir com Rufinus já que não havia outro candidato à altura para conquistar a maioria da preferência popular, tudo isso em tempo hábil, bem antes do pleito do reino, para evitar levantar ainda mais suspeitas.

Afinal, entre os dois males, o conselho entendeu que Rufinus era ameaça ainda maior que Opus I, e que este último talvez já houvesse aprendido a sua lição sobre os limites de seu poder através das experiências passadas que lhe subtraíram a liberdade.
A seu favor contava que, ao longo de seu passado, não havia se mostrado tão arredio às negociações como Rufinus.

A questão que resta, que o conselho não pesou em suas decisões é que "lobo perde o pelo mas não perde o vício".
Opus I talvez apenas aprendera daquela lição que precisava elaborar uma estratégia mais refinada para atender seus interesses. Homens assim, são por demais fiéis aos seus objetivos. Beira à obsessão.

Era necessário fazer com que Opus I retornasse em tempo de substituir Rufinus e garantir seu retorno no intrincado processo de votação de que os súditos do reino participavam como um meio de fazer ver ao povo que eles eram parte do poder, ao menos na sensação que promove.

Havia, portanto, ainda por vencer o desafio do pleito através de sua contagem.

Apesar da grande contestação sobre a credibilidade da sistemática de contagem de votos daquele reino, e mediante as muitas reclamações e protestos, imaginaram que havendo uma pequena diferença entre os valores finais, tornaria muito difícil arguir a ilegitimidade do processo já que todo o reino havia se dividido em duas facções que lutavam entre si. Bastaria apenas um ligeira vantagem para validar o novo rei, e tudo ficaria dentro do esperado e aceito.

E o conselho contou com a sorte e a sua capacidade na eficiência de organizar o pleito, ansiando para que os resultados pudessem reconduzir Opus I ao trono que lhe fora subtraído pelas próprias decisões desse conselho.

E no mundo das grandes personalidades, o objetivo principal vale o sorriso e a conciliação superficial que atende aos interesses imediatos fazendo o passado desaparecer tão rapidamente quanto as pegadas deixadas na areia da praia política, por mais pesadas que sejam, que após a maré alta levar seus beijos de espuma pelos braços de suas ondas desaparecem com se não tivessem existido.

São as ondas que vão e voltam arrastando e apagando toda a memória da praia, fazendo-a reviver com um novo propósito a cada nascer do sol da esperança que calidamente sustenta o calor do povo e conforta o seu sonho de segurança.


Continua no próximo capítulo, o último da temporada:
Hot Crowns - Capítulo V - A Mortal Guerra dos Bastidores


NOTA DO AUTOR:
Este próximo e último capítulo será o mais trabalhoso e difícil.
Dessa forma, sua publicação demandará mais esforço, e por conseguinte, mais tempo.
Desculpas, e muito obrigado.



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