agosto 31, 2022

Genialidade e Memória


 


Do latim temos:

genĭus,i 'divindade tutelar; porção espiritual de cada um; graça; inspiração, talento'

Ou seja, a definição deixa implícita o ato de criar.

Do grego génos, também exprime a noção de nascimento, origem (ex.: monogénio), ou qualidade extraordinária. (Dic. Priberam).


Afinal, o que seria ser um gênio?

Popularmente, é usado para alguém que excede os padrões usuais, muitas vezes como uma forma de elogio superlativo. Ou não!  :-)

Recentemente, a Netflix apresentou uma personagem hipotética na série "Extraordinária Advogada Woo" (Extraordinary Attorney Woo) que por ser dotada de memória fotográfica excepcional é considerada "um gênio" nos diálogos da série, porém lutando com as dificuldades de interação social própria dos altistas.


Podemos observar três qualidades principais que suportam a genialidade:

- capacidade de inteligir — inteligência —, ou seja, de concluir coisas a partir de fatos onde o entendimento normal não vai além.

- criatividade: capacidade de elaborar coisas novas e aperfeiçoar antigas que representam um salto no conhecimento ou no comportamento humano.

- memória: capacidade de armazenar informações em geral à medida da sua vivência.


A partir destas três características, podemos imaginar contextos especiais de acordo com a intensidade de cada qualidade na composição da natureza de uma pessoa.


Grande capacidade de inteligir

Einstein é um exemplo.

A partir de seu "Gedanken Labor" (laboratório de pensamento) foi capaz de explorar novas dimensões da física de sua época sem qualquer laboratório convencional, exceto aquele da sua imaginação que buscava a matemática como guia.





Já Stephen Hawking, além da inteligência tinha também muita memória, porém ele tinha colegas ainda mais privilegiados na capacidade de lembrar (um deles chegou a corrigir Hawking quando ele enumerava os mais de 150 parâmetros de uma equação).




E quando o ponto forte é memória?


Por exemplo esta mulher:
Mulher de Síndrome Rara - BBC


O possuidor de memória excepcional é capaz de repetir coisas com uma eficiência atroz, mas não é necessariamente capaz de criar associações novas a partir delas, exceto aquelas já implícitas na própria informação armazenada em memória. Esta habilidade depende da capacidade de inteligir unida à capacidade criativa.

Esse tipo de "inteligente" passa em todos os concursos, lembra de tudo. É uma biblioteca viva, ambulante, etc., mas é só: apresente-lhe uma palavra, "peça um pesquisar" e a informação será retornada.
Isso não seria realmente inteligência.

NOTA: neste texto, por "associações implícitas" entende-se as informações que podemos deduzir por associações automáticas que a própria informação já carrega de forma óbvia à nossa vivência, tal como "sorvete gelado".


E se o gênio tiver alta capacidade de inteligir, mas for desprovido das demais?


Ele é fantástico para perceber relações novas entre as informações que lembra.
Tendo uma memória restrita, pois todos nós temos alguma base mínima, ele ficará limitado na sua capacidade de inferir dependendo dessa "janela de memória"[1], lembrando um carro que tivesse um motor super potente mas um tanque de gasolina subdimensionado. Este carro poderia atingir velocidades altas, mas parte do ganho se perde no reabastecimento frequente.

Esse tipo de gênio terá um desempenho que exigirá tempo de elaboração proporcional à sua taxa de memorização, ou "janela de memorização".

É claro, excluímos dessa análise patologias da falta de memória, doenças  como Alzheimer, ou algo como "amnésia anterógrada" (anterograde amnesia, short-term memory loss) mostrada aos "modos hollywodianos" no filme 50 First Dates, onde alguma verdade é uma ponta de inspiração para a ficção, 


E se o gênio tiver só capacidade criativa?

Provavelmente irá se destacar em ramos que não exigem de forma determinante as duas outras qualidades, como é o caso da pintura, escultura, etc.


Supondo um caso prático bem corriqueiro e que define os caminhos de uma nação.

Boa parte da população vota mal porque, ou não tem interesse, e/ou já esqueceu o que os candidatos fizeram.
Para votar, baseiam-se simplesmente nas novas promessas. quando então os partidos tradicionalmente tiram vantagem do eleitorado nos palanques às vésperas da eleição. 

Por que políticos não fazem campanha antecipadamente?

Porque o "povo tem memória curta', como diz o ditado.
O povo esquece e engole as mesmas mentiras e promessas de sempre.


O Super Gênio

Na prática, as três qualidades apresentadas acima trabalham juntas, em taxas de participações diferentes.

Quanto o gênio detém todas as três qualidades com alto grau de eficiência, aproxima-se da genialidade ideal.


O Pseudogênio


Genialidade precisa de um toque especial.
A capacidade exclusiva de lembrar tudo é algo extremamente valioso, mas se for despojada de um toque pessoal de criatividade e inferência que diferencie do comportamento humano médio, torna-se algo parecido com o potencial que máquinas são capazes de suprir.

Neste contexto, a genialidade fica diluída pela reprodutibilidade "não inteligente" ou pela "inteligência artificial", algo que um robô faria. E dificilmente chamaremos um robô de gênio! :-)


Separando as coisas, facilita entender essas pessoas com dons especiais


Vou apresentar este tópico através de um exemplo real.

Quando era garoto, tive a oportunidade de frequentar por um breve período o atelier de um pintor com quadros expostos (e vendidos) no Brasil e no exterior, quando morava na capital de São Paulo (Aclimação).

A minha curiosidade era grande porque falavam da sua genialidade para pintar e eu desejava muito conhecer alguém assim, "de carne e osso e ao vivo".  :-)

Através de meu pai, consegui "o passe" para visitá-lo.

Durante alguns dias, pela manhã, eu tocava a campainha do sobrado onde ele morava com a esposa, que sempre atendia à porta fazendo um gesto rápido, típico de italianos, para que eu subisse para o atelier, no andar de cima do sobrado, uma sala grande e ampla.

Existia um pequeno sofá, onde eu me sentava e ficava horas observando ele pintar. 
Ele gostava de conversar, embora sua prosa fosse como interrupções repentinas dada à sua absorção naquilo que fazia, tal como golfinhos vão à superfície para pegar ar. Eu permanecia discreto, porque não queria atrapalhar. "Crianças também têm senso de oportunidade". :-)

Pessoas assim têm vida introspectiva muita intensa, e "tagarelas" são incompatíveis quando elas trabalham.

Numa dessas emersões, ele fica meio de lado no velho banquinho branco de madeira, muito simples que usava para sentar enquanto pintava seus quadros, e me disse, rompendo o silêncio no seu sotaque italiano típico e forte:

"Isso daqui é o mar, mas não tem ondas! Tá uma perqueria não tá?! "

Eu fiquei em dúvida do que deveria dizer, afinal o quadro não estava pronto. Achei melhor olhar para ele como quem pergunta "E daí?", mas não responde.

Além do dom artístico, ele pintava as cenas que via de memória, quando a maioria dos pintores precisa de um modelo. 

"... aqui ainda nem praia tem!!!"
"Eu tô pintando uma praia do litoral paulista em que estive no por do sol... e vi essa cena e gostei muito!!"

De fato, a parte superior do quadro retratava o céu com toda a magia de um por do sol mas contrastava com a parte inferior que parecia algo como uma faixa borrada de verde seguida por outra faixa também borrada em tom amarelado.

Virou novamente para o quadro e ficou minutos estáticos como que penetrando na tela.
Torna a girar para mim, e diz animado:

"Agora você vai ver o mar..."

E foi quando a mágica dos geniais surpreende as almas dos simples mortais.
Pegou uma pequena espátula usada por pintores e começou em movimentos rápidos, que mais pareciam aleatórios e alucinados, a borrar aqui e acolá de tons em branco que se misturavam àquela faixa borrada de verde cuja tinta ainda estava fresca, formando as ondas prometidas, adornadas por espumas frescas que eu podia tocar com as mãos dos olhos e senti-las com a imaginação, tal como pudéssemos finalmente tomar um banho de mar em um lindo final de tarde, ao por do sol.

Tudo muito rápido, frenético.

"E agora, tá bom???"

Eu arrisquei: "as ondas estão maravilhosas..."

Mas está faltando alguma coisa... sabe o que é?!

Ele me testava, o tempo todo, mas eu ficava mais paralisado para entender como ele conseguia materializar de um borrão verde com uma espátula atolada de tinta branca a carícia da brisa que eriçava as ondas com suaves espumas que bailavam na brisa, exatamente e tal qual nossa visão capta em breves frações de segundo a beleza que até então me parecia impossível de guardar.

E vendo que eu não saia do meu estado de congelamento, ele continuou num tom de quem dá o gabarito ao aluno de forma carinhosa:

"Tá faltando aquele reflexo sobre a areia quando a onda retorna para o mar."

E na faixa-borrão restante, de cor creme amarelada, ora com o pincel, ora com a espátula, como se atirasse pequenas porções de tintas sobre a tela transformando o quadro numa segunda aquarela, além daquela que ele segurava na mão esquerda e que fornecia uma miríade de tons. Repentinamente, num movimento brusco pegou um pano sujo de tinta e começou esfregar aquela parte da tela como que estivesse apagando.

"Hiiiii, ele errou! Tá refazendo"... Pensei.
Ledo engano...
Ele retorna aos movimentos frenéticos de pintura entremeados de paradas súbitas e meditativas.

Após poucos minutos, vira-se para mim, afastando-se do quadro como quem apresenta orgulhoso o que fez e pergunta:

"Tá vendo o reflexo do por do sol sobre o tênue filme de água que vai se recolhendo na areia?"

Sim... eu via mais que uma fotografia. Eu olhava para uma imagem que me transportava e que parecia ter alma, como se pudesse emanar a magia desses momentos.

Então ele me convidou para tomarmos o lanche da tarde juntos.
Eu não sabia de onde vinha tanto carinho, mas meu pai, mais tarde, me contou que, quando minha mãe estava grávida de mim ele olhou para a barriga dela e disse:
"Ser for maschio, eu vou te dar um quadro de presente!".
E deu. Eu o tenho até hoje.

Entre um gole e outro de café com leite, que eu não tinha pressa alguma em terminar para que o momento pudesse se estender, ele foi me contando a sua história, a sua infância miserável na Itália, e que não tivera a oportunidade de aprender a ler e escrever.

Foi ali que comecei a aprender a minha lição.
Para ele, as letras eram como desenhos (palavras dele).
Era a esposa que cuidava das contas e de tudo o mais.

Naqueles dias com Gino Bruno, eu aprendi muitas coisas.
Como congelar sentimentos sobre uma tela de pano, como abrir portas que transpõem a alma para  outras dimensões e como o cérebro humano pode ser tão surpreendente.

Tanto ele, como meus pais e outras pessoas me perguntaram se eu queria me tornar um pintor observando o interesse do garoto naqueles dias em que o visitava.

Eu não tinha como responder.
Não dava para explicar o motivo real: o meu interesse estava no processo.
Eu já havia devorado tantos livros biográficos, mas eram livros, e aquela foi uma oportunidade de converter páginas em realidade.

Apenas desviei a atenção às respostas que me pediam contando entusiasmado como ele havia criado tudo aquilo, tão fantástico!
Uma coisa típica de criança, contar o que viu!
Disfarce perfeito.

O meu interesse continuou pela vida e pude conviver com outras pessoas assim, cada uma delas tão distante de mim quanto próxima de seus dons excepcionais, mas concomitantemente tão próxima quanto mais distante estivessem deles.

Assim são os gênios.
Um ser humano sob a capa da genialidade.


NOTAS SOBRE TERMOS UTILIZADOS NO TEXTO


[1]: janela de memória: período de tempo que a memória retém informações não emocionais.
Informações conectadas à emoção são armazenada por tempo indeterminado, mas aquelas que coletamos, por exemplo, em atividades de estudo, após algum período são perdidas, necessitando revisão para conservá-las. 

NOTA: a eficiência da memória também pode ser avaliada pelo número de vezes que precisamos repetir uma informação até que permaneça ativa em nossa lembrança. Fatores emocionais, neste contexto, são descartados porque tratam um capítulo à parte.











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